18 de jun. de 2012

As diaristas...




Uso esse espaço hoje para um desabafo. Muitos me condenarão, mas tenho que confessar do fundo do meu peito: odeio faxineiras!
A palavra ódio talvez não seja a mais adequada. O que tenho na verdade é trauma ou algo muito próximo disso. Com suas falas mansas, seus sotaques geralmente nordestino e suas toucas na cabeça, essas mulheres são para mim o esteriótipo do juízo final.
Desconfio que, quando chegar o meu fim, a morte me virá na forma de uma mulher de meia idade, grisalha e com touca na cabeça. Dizendo morar na periferia, ela me estenderá a mão e, soltando uma dessas gargalhadas de madrastas dos filmes das Disney, sorrirá dizendo:
- Se fodeu, meu filho! Se fodeu, meu filho!

A visão é apo calíptica. Mas nem a bíblia dá conta do meu medo dessas senhoras. Elas são más e guardam um rancor no peito típico da babá Maria de Fátima, vilã da novena “Vale Tudo”. Quem já fez entrevistas para contratação de uma diarista sabe do que estou falando. Pelo telefone são todas uns amores. Chegam na sua casa pela primeira vez no horário, chamam você de senhor, até se voluntariam em coar o café preto de manhã.
Bastam duas semanas para que mostrem as garras e transformem sua vida num inferno!
Trocam os livros de lugar, mudam as ordens dos cd’s e dv`s e quebram todos os copos da casa. Dão pitácos na sua vida, dizem que seu quarto está uma bagunça e ainda ficam amigas do porteiro que você mais detesta.
Nos últimos doze meses troquei sete vezes de faxineira. Não sei por qual motivo, mas elas me escolheram para destilar todo o ódio que acumulam em anos de destrato de outros patrões. Justo eu, que ouço seus dramas, divido a mesma mesa e até distribuo parte dos meus pertences com seus milhares de netos ou filhos.

Dia desses, quando ainda estava desempregado, saí para uma entrevista e voltei com uma monstruosa fome. Era quarta-feira, dia de limpeza. A vilã da vez morava em Perus e, como na minha casa não tinha nada pra comer, passei no primeiro boteco para adquirir o rango. Solidário, comprei duas marmitex. O cardápio do dia era peixe ou feijoada. Liguei em casa para perguntar à senhora da vez qual era sua preferência, mas ninguém atendia. Tentei uma, duas, três vezes. O telefone tocava exaustivamente e nada de atender.
Decidi por comprar um peixe pra mim, que é o meu cardápio preferido, e uma feijoada na inocência para ela. Achei que era mais fácil agradar com uma feijuca que desagradar com peixe.
Ledo engano...
Quando a porta do apartamento abriu, o som do último volume denunciava que aquela não seria uma boa tarde. A moça ouvia a banda Magníficos e, com um lenço amarrado na cabeça, limpava os vidros da sala com ajuda da escada. Com a minha entrada, tomou um susto e quase caiu do décimo andar.
- Ruth, trouxe comida pra nós. Vamos comer?
- Vou já, já, “seu Rudrigu”.
Comecei a comer antes porque a fome já ladrava feito um cachorro vira-latas. Ao entrar na cozinha, a faxineira deu a deixa para o desfecho trágico do episódio:
- Nossaaa… Que cheiro bom é esse?!
Realmente, era um peixe ensopado muito gostoso, vendido na esquina da Teodoro Sampaio com a Capote Valente. Mas como só tinha um, tentei justificar ainda com a boca cheia:
- Olha, não sabia se você gostava de peixe ou não. Acabei trazendo feijoada para você, tudo bem?
- Tudo bem nada – disse a mulher. Vocês patrões são todos iguais, pensam que ainda estamos na época da escravidão e tratam a gente como vassalos. Só porque eu moro em Perus, tomo duas conduções para chegar até aqui nessa mansão, você acha que é melhor do que eu? Isso é preconceito, é…

A comida quase não descia direito. Entalou na entrada na laringe enquanto a mulher desatava o rosário de críticas. Nunca pensei que uma feijoada fosse causar tanta discórdia. Ouvi tudo sem acreditar na cena que se desdobrava naquela cozinha. Cheguei a olhar para os lados, na esperança que fosse mais uma armação do pessoal de casa.
Pensei por um segundo que até fosse uma pegadinha do Silvio Santos. Na minha fantasia, a faxineira tiraria o disfarce logo em seguida, apresentando-se como Carlinhos Aguiar ou Gibe…
Lamentavelmente em vão.
Antes que eu esboçasse qualquer reação, a mulher virou as costas praguejando contra Deus e a humanidade. Dizia que preferia ficar com fome a comer aquela comida amaldiçoada.

Cristão e de origem pobre, larguei o suculento filé com a mesma culpa dos soldados que imolaram Jesus Cristo na cruz. Tinha cometido o crime que mais detestava: o de preconceito. Tudo por causa de uma feijoada, que há séculos não tem nada de inocente. Mas que estava longe de ser pivô de um crime tão repugnante.
Envergonhado, liguei para a minha colega de apartamento contando a história. Desesperada e temerosa pelo meu temperamento explosivo, ela aconselhou-me a sair de casa e evitar novas confusões. Ela temia que o episódio da faxineira virasse o caso da manicure, protagonizado anos atrás por um grande técnico de futebol…
Na semana seguinte, com tudo contornado, o telefone toca:
    Pronto.
    Seu Rudrigu, sou eu.
    Eu quem?
    A Ruth. Lembra de mim?
    Como ei de esquecer, Ruth?! – comentei baixinho.
    Posso ir amanhã? – disse ela sem pestanejar e sem nem gaguejar de vergonha.

Quanto ouvi a pergunta achei que a mulher era louca, que tinha dupla personalidade ou era esquizo-frênica. Pra não pagar pra ver outra confusão, inventei uma desculpa esfarrapada e disse que a viajaríamos por dois meses para a Europa. A casa ficaria vazia e sem necessidade de faxina por um longo período.
Era a senha mais fácil para se livrar de uma faxineira. A maluca nunca mais ligou e o processo, que eu tanto temia, ainda não foi lavrado em juízo.
Do episódio restou apenas a casa suja. Sem faxineira, a poeira se acumulava e era hora de achar outra diarista. Fiz contatos com várias tias e amigas, todas elas com boas histórias para contar sobre as faxineiras. Histórias boas e ruins, como a da faxineira que deu a luz prematuramente na área de serviço, ou a outra que roubou mais de três mil da patroa.
No final das contas, achamos outra faxineira recomendada por amigos que também moravam em república. No começo foi a mesma papo de “Seu Rudrigu”pra lá e pra cá, mas acabou sendo dispensada por chegar atrasada e deixar a gente esperando em casa.
Não fazia a limpeza adequadamente e toda semana pedíamos exaustivamente para ela lavasse o latão de lixo que ficava na área de serviço.
Era a mesma coisa que pedir para não lavar.
Quando questionávamos a serviço mal executado, ela vinha com a mesma desculpa:
    Ah, é? Era pra limpar?
    Quantas vezes eu já pedi isso?
    Pediu…? – sorria ela, sem graça e baixando a cabeça.
Era uma relação fadada a fracasso. Aliás, o que mais admirava nela era a desfaçatez e o contorcionismo teatral para se livrar do embaraço. Colocava as atrizes globais no chinelo.

Para minha sorte (ou azar), descobri que isso é uma característica da classe. A última que passou por aqui foi dispensada porque tinha as mãos mais pesada que as do Popeye. Era a única que frequentava meu quarto na minha ausência. Um a um, ela pôs fim a todos os bibelôs que eu trouxera da última viagem à Bahia.
Eram artesanatos vagabundos, mas de valor sentimental inestimável.
O pior de tudo é que eu só descobria o crime semanas depois do flagrante. O atentado era crime era tão bem maquiado para não deixar registro dos fatos. Num sábado qualquer, fui mostrar um dos pretos-velhos baianos para a minha mãe e, ao tirar o boneco de barro do lugar, a cabeça pulou na frente e rolou para debaixo da cama.

Era o quinto elemento quebrado em três meses de emprego. Se a média fosse mantida, em um ano já não restaria apartamento para contar a história. E o pior de tudo: quebrava sem nem ao menos avisar. Ao ser questionada, a resposta era padrão: “Não, seu Rudrigu. Não fui eu não! Magina que eu faria isso com as coisas do sr…” – sempre com voz embargada e olhar amedrontado, para ajudar na composição do personagem.
Minha vontade era jogá-la pela janela toda vez que respondia tão descaradamente. “Atriz maldita!”, pensei várias vezes. Pena que o arremesso de faxineira pela janela não é esporte olímpico. Do contrário, seria minha única vocação esportiva…

No balanço dos fatos, era mais uma daquelas relações humanas fadadas ao fracasso da convivência. Contei mais uma vez da minha viagem para a Irlanda e dispensei pessoalmente os serviços dela por algumas semanas. A sorte é que ela entendeu o recado.
As paredes devem ter se sentido aliviadas.
******
Diante de tantos fatos verídicos, não preciso justificar o meu trauma por essas doces senhoras mais uma vez, né? Nos momentos de reflexão, tento entender por que essas coisas aconteceram só aqui em casa. Que grande mal fiz nessa ou em outra encarnação?
Só posso ter sido uma daquelas patroas megeras, que humilhava os empregados e atrasava os salários. Não tem outra explicação para tamanho ódio contra mim.
O Paulo, que é namorado da Thaís e vez outra está por aqui, diz que o drama da mãe dele é o mesma. Ou até pior, pelas histórias que ele conta. Na teoria dele, o problema está no cerne do marxismo: “É o ódio de classes que se manifesta nos serviços domésticos”, debocha.
“Qualquer hora veremos o I Simpósio Nacional das Faxineiras ou o movimento “Faxineiras pelo direito de sacanear”, teoriza Paulo.
Os amigos da CUT preferem dizer que quebrar e ironizar faz parte do curso de reciclagem que toda faxineira faz antes de entrar na profissão.
Há quem diga que é vingança ou terapia.
A atual diarista que temos atende pelo nome de Nita. Não é o nome verdadeiro, mas ela se recusa a dizer o real. Estamos juntos há seis meses e até agora ela não pisou na bola.

Claro que não é perfeita. Já quebrou outros três bibelôs e dei ordens expressas para que ela se mantenha longe do videogame e dos inúmeros equipamentos eletrônicos espalhados pela casa.  Semana passada ela quase botou fogo no apartamento ao tentar esquentar um pão no microondas. Ela digitou o número doze, ao invés de um minuto e vinte. A cozinha fede até agora.
Apesar disso, só o fato dela não me chamar de “seu Rudrigu” já é um grande passo para eu me livrar desse trauma.

((O narrador senta na cadeira. Todos os integrantes do círculo batem palmas para mais um depoimento vitorioso do A.A.))
Por Rodrigo/ 26 de setembro de 2009 
n-ideias
 
 "O que pode nos destruir na vida não é o que os outros fazem para nós, mas o que permitimos que outros façam de nós. O maior consolo que você precisa não é dos outros, é de você mesmo. Não adianta o outro deixar você livre, e você se sentir escravo."

..Kay

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Chico Xavier